domingo, 28 de agosto de 2011

A MELANCOLIA de Lars Von Trier e do Cinema em Pernambuco.

     O tema deste texto é o filme Melancolia, porém não poderia deixar de abordar este filme sem problematizar, em breve linhas, o funcionamento do mercado cinematográfico. Por ano, cerca de dez mil filmes são feitos no mundo, contudo, apenas 2 a 3 % deste total são exibidos no Brasil. Esta problemática está diretamente ligada à política de distribuição de filmes do mercado cinematográfico.

     Após um filme estar pronto, os produtores o exibem para diversas distribuidoras como Warner, Europa Filmes, Focus Filme, Columbia Pitures, Califórnia Filmes etc.; sendo aprovado por uma das distribuidoras, elas passam a negociar com os donos dos principais cinemas de vários países, os quais irão levar em consideração uma estatística especulativa de lucratividade da exibição do mesmo. Sendo positiva, o negócio é fechado – inicia-se a propaganda – e o lucro é dividido meio a meio entre a distribuidora e os exibidores. Em síntese, a arte cinematográfica desce ao restrito patamar dos lucros e estatísticas – perdendo seu valor espontâneo de agente questionador da sociedade a partir da subjetividade da lente do cineastra em seus temas mais diversos.


Melancolia: 100% de ingressos vendidos na estreia,
ultrapassando mais de 5.000 espectadores na 4ª semana de exibição.
             Restrito a tal política, não é à toa que filmes como o do renomado diretor dinamarquês Lars Von Trier se torne invisível para as diversas salas de cinema do Brasil, mesmo quando estrelados por atores hollywoodianos como Willem Dafoe (O Anticristo) e Nicole Kidman (Dogville). Desta vez, em Melancolia, entraram em cena Kirsten Dunst (famosa pelo filme Homem-Aranha), e Kiefer Sutherland (protagonista da série 24 Horas). Mas isto não foi o suficiente para os dois grandes cinemas de Pernambuco, o Box Cinema e o UCI Ribeiro, abraçarem a nova obra de Von Trier – na verdade seu nome os assustam, dado a complexidade questionadora e existencialista dos filmes deste diretor que, infelizmente, às vezes, afasta o grande público. Dogville estreou em 2003 no UCI Ribeiro e semanas depois da estreia sua bilheteria caiu bruscamente. A pessoa de Nicole Kidman, em um dos seus mais brilhantes trabalhos, não foi o suficiente para manter uma boa lucratividade – daí em diante, ao menos em Pernambuco, mais nunca o grande público ouviu falar de Lars Von Trier. Todavia, o cinema da Fundação Joaquim Nabuco, instituto histórico-cultural vinculado ao Ministério da Educação, vinha abraçando desde 1998 a obra do diretor e, por consequência, colocou em cartaz o seu mais novo trabalho, Melancolia. O qual, para surpresa de todos, segundo Kleber Mendonça, curador do cinema da Fundação, teve em sua estreia 100% dos ingressos vendidos e ultrapassou, na 4ª semana de exibição, mais de 5.000 espectadores.

         Melancolia não é um daqueles filmes que faz do espectador um mero observador de um início, meio e fim. Von Trier transforma o espectador numa espécie de voyeur dos sentimentos da trama, ou seja, ao observarmos a película, passamos a interagir com os paradoxos existencialistas da trama, atribuindo-as a nós mesmos. E isto não só através dos diálogos, mas também, através da belíssima fotografia do filme que, em vários momentos, remete a uma plasticidade surrealista.

Surrealismo niilista: a natureza rasgando o vestido moralístico.
        No início do filme somos massacrados com a imagem da Terra sendo destruída. Simultaneamente à catástrofe, presenciamos, em câmera lenta, pessoas agindo apenas pela espontaneidade de seus inconscientes. As sequências de cenas parecem incoerentes. E de fato são (!): uma linda noiva com o seu buque desliza por sobre as águas de um rio; uma mãe corre desesperada, sem rumo, abraçando fortemente seu filho. Mas como salva-lo se a catástrofe que esta por vir é eminente? Que Razão há em seu agir? E a mesma noiva que antes deslizava por sobre o rio, também aparece correndo em direção ao nada, porém, as raízes das árvores brotam bruscamente da terra, enroscando suas mãos e pernas, impedindo-a de correr, rasgando seu vestido. É a natureza proclamando o caos, rasgando simbolicamente os valores morais da sociedade, fazendo do ser Humano novamente natureza, ou seja, tornando-o parte insignificante dos acasos da imensidão do cosmo.

     O filme é dividido em duas partes, a primeira dedica-se a Justine (Kirsten Dunst) que, diante de sua glamorosa festa de casamento, patrocinada pelo seu cunhado, John (Kiefer Sutherland), e organizada por sua irmã, Claire (Charlotte Gainsbourg), transmite ao espectador uma constante angustia que, para John, parece incompreensível, dado que ela está vivendo, naquele momento, todo o glamour que qualquer mulher desejaria para o seu casamento: com chegada em limusine, festa numa mansão, baile e ritos nobres de discursos à mesa. E visto estas circunstâncias John pergunta para Justine se ela está feliz, mas tendo implícito em sua pergunta que ela deve(!) ficar feliz. Ela responde que sim, mas na festa  demostra estar sempre cansada e de lá foge constantemente. Sua irmã, aflita em entender a indisposição de Justine, pergunta o que lhe aflige, e ela responde que possui um “cordão cinza nos pés” – é a bola de ferro da moralidade, que a aprisiona e a atormenta. E o ato de ter olhado para o céu ao chegar à festa, deixava-lhe clarividente que nada somos diante do Universo e que os valores morais são meras formalidades construídas pelo homem e transformadas, por ele mesmo, em arquétipos imanentes a se mesmo.

     O niilismo de Justine leva-a ao total fracasso de sua festa. Ela é pressionada por sua irmã a renegar sua angustia; é pressionada pelo seu chefe de trabalho, também convidado da festa, lutando para não perder sua melhor funcionária; e por seu cunhado, impondo uma felicidade arquetípica. Justine é um ser dionisíaco aprisionada em muralhas apolínias. Atormentada, renega seu emprego; ignora o lamento de sua irmã e rasga o vestido da moral ao trair seu noivo durante a festa, simplesmente pelo ato de trair e não de obter prazer, destronando a felicidade arquetípica do matrimônio. E mesmo sem ter conhecimento do ocorrido, seu noivo a abandona, pois não entende a apatia dela para com ele e para com todos os elementos de uma noite construída para ser estritamente bela – tão bela quanto a estética de Apolo.

Vênus de Lars Von Trier
     A segunda parte dedica-se a Claire que, muito antes do casamento de sua irmã, já vinha atormentada com a possibilidade do astro Melancholia se chocar com a terra, informação a qual vinha circulando em sites sensacionalistas. John, porém, é um astrônomo e afirma que o astro não se chocará com a Terra, pois os cálculos sistemáticos realizados pela comunidade científica chegaram a esta conclusão. Justine, por sua vez, está psicologicamente abalada, mas isto em nada tem a ver com o Melancholia, pelo contrário. Em uma das mais belas cenas do filme, vemos Justine à beira de um rio, com o seu corpo completamente nu, sendo iluminada pelo astro. Ela sente que o por vir é eminente e se delicia com a luz prateada do astro que faz de seu corpo nu uma Vênus entregando sua volúpia a Dionísio, assim como na mitologia grega. O Melancholia é um astro dionisíaco que está além das especulações matemáticas do homem, para compreende-lo é necessário deixar-se embriagar por ele.


John acompanhando o Melancholia à luz da Razão.
         John representa o discurso cartesiano e cientificista da trama, de tal forma que, ao perceber que os cálculos estavam “errados”, ele suicida-se, e Claire perde seu único sustentáculo de certeza de uma não colisão do astro com a Terra. Seu tormento inverte os papéis na trama. Justine, aparentemente louca, passa a ser a personagem mais consciente de toda a trama, dando apoio a Claire e seu sobrinho, Leo. Com ela, a razão e a ciência cede lugar à tragédia. Para ela, se o fenômeno é inevitável, façamos dele êxtase, pois se o homem é parte da natureza, por mais que ele a decodifique à luz da Razão, ele sempre estará sujeito a ela e aos seus acasos.

     Assim, Von Trier nos faz refletir, nesta trágica parábola, o quão insignificantes podem ser os valores morais, tanto sociais quanto cientificistas, se nos compararmos à imensidão do cosmo. O físico e astrônomo Marcelo Gleiser, em seu livro Criação Imperfeita, diferentemente do personagem John, nos mostra o quanto já foi descoberto sobre o universo e as possibilidades do que está para se descobrir, porém, afirma que nunca encontraremos uma lei que englobe todas as possibilidades, ou seja, uma lei universal. Se um renomado astrônomo faz tal afirmação, porque nós, agentes sociais, não podemos nos propor à quebra de arquétipos morais de acordo com as necessidades das circunstâncias? Ou seja, porque não aceitar a relatividade de padrões de valores, crenças e comportamentos? Isto é algo difícil para o ato de ser Humano, pois negar o a priori moral significa negar a imanência da ótica de mundo que até então lhe era vigente. E negando, abrimos um vazio que nos angustia dado as possibilidades de múltiplas óticas – e nem todos sabem lhe dar com o vazio de ser um grão de areia dentro desta multiplicidade, tanto na Terra quanto no Universo.

5 comentários:

  1. Seu texto é deveras interessante e parece responder duas indagações que muito me incomodaram no filme: porque tal traição flagrantemente GRATUITA e que diabos significa "tia quebra aço"; a primeira vc responde,a segunda, dá a entender, ao mencionar a "bola de ferro da moralidade" (se bem que isto soa um tanto inverossímil se levarmos em conta que mesmo o pequeno garoto chamava a tia de "quebra aço", de modo que o termo pode ter mais de um significado.

    Sua interpretação para a entrega de Justine ao planeta é convincente, porém não acho que se possa reduzir a figura dela ao dionisíaco; se, por um lado, dada a catastrofe iminente ela incorpora o espírito do "amor fati", quando da sua festa de casamento ela não passa duma "decadent", tendo em vista que ela não precisaria ter "tentado" rezar pela cartilha do rebanho, como fez. O fato é que antes do ocaso terraqueo, Justine vicenciava uma apatia melancólica por vezes irritante mesmo a quem - como eu - não é simpático àquele circo (no sentido pejorativo do termo) armado em seu casamento.

    Quanto ao papel cartesiano do "cunhado", há um pouco de má-fé nele, pois quando Claire replica que há cientistas que não corrobaram da visão dele, ele diz que os "verdadeiros" (ou será "sérios" o termo por ele utilizado?) dizem que não há perigo, de modo que ele escolheu em que lado acreditar de acordo exlusivamente com sua vontade. Teremos ai uma crítica de TRier, no sentido de que a vontade sempre está a cima da precisão científica? Mote interessante ao qual o Sr. me despertou.
    Eis então novos elementos para eu incorporar no meu texto sobre o filme.

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  2. Oi Miradouro Cinematográfico, ou deveria dizer Beto? hehehehe...

    Gostei muito da sua observação, principalmente quando vc traz à tona os princípios "amor fati" e "decadent", os quais percebo agora como uma lacuna em minha abordagem, dado que o êxtase dionisiaco de Justine só ocorre, justamente, neste encontro com o "amor fati", tornando-a "uma Vênus entregando sua volúpia a Dionísio". E as "Muralhais apolinias" , a qual cito no texto, proporciona seu estado de "decadant", fazendo dela "um ser tipicamente mórbido [o qual] não pode ficar são, menos ainda curar-se a se mesmo." (Ecce Homo, cap.1 aforismo 2). Contudo, na dialética do filme, percebemos que Justine é o ser possuidor da sanidade da trama ao encontrar os elementos cetos para lidar com a catástrofe, pois "para alguém tipicamente são, ao contrário, o estar enfermo pode até ser um enérgico estimulante ao viver, ao mais-viver."(Idem.). Ou seja, de fato, a trama também mostra a transição (ou equilíbrio?) do estado "decadant" ao encontro do espírito "amor fati."

    Sobre se existe um questionamento de Trier da vontade humana em relação à precisão científica, deixo isto a seu cargo :). Não acredito em textos cem por cento conclusivos - toda conclusão é uma porta para uma nova indagação.

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  3. Parabéns Daniel, perfeita as duas críticas que vc faz nesse post, tanto a que se refere ao mercado cinematográfico, quanto a que se refere ao filme.

    Sua visão é bem parecida com a minha, mas tu ainda conseguiu perceber elementos que eu não tinha percebido, como por exemplo, toda essa influencia grega que vc enumerou.

    Parabéns!

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  4. Saudações tricolores!

    Como eu disse, sua perspectiva foi-me bastante elucidativa em alguns aspectos, mas minha tendência é asfatar-me dela (aqui esclareço que pretendo postar ainda seu texto no meu blog, não o fiz ainda por um misto de preguiça e estratégia, esta última consistindo em não postarmos o mesmo texto na mesma época), mas pretendo também postar um meu (o qual não redigi), expondo meu ponto de vista inicial, somando-se a ele certos aspectos que seu texto me suscitou.
    Gostaria de encerrar perguntando-lhe duas coisas que não ficaram claras em seu escrito:
    1)tal interpretação nitezschhiano-dionísiaca do filme é perspectiva exclusivamente sua ou achas que Tries bebeu conscientemente em Nietzsche?
    2)vc se identifica com Justine?

    (redigido ao som de Art Blakey e Charles Mingus).

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  5. http://www.miradourocinematografico.blogspot.com/2012/01/melancolia-de-lars-von-trier-e-do.html

    =D

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